A busca por compreender as intrincadas interações entre moléculas tem sido constante desde os primórdios da ciência. Nesse contexto, a técnica de docking molecular emergiu como uma poderosa ferramenta para auxiliar a desvendar essas interações, principalmente em ligações entre receptores e ligantes. Esta técnica, que combina conhecimentos da bioquímica, biologia molecular e ciência da computação, desempenha um papel fundamental na simulação de interações entre moléculas, e cada vez mais contribui para a descoberta e desenvolvimento de novos fármacos.
O advento do docking molecular remonta à década de 1980, quando os avanços na computação permitiram a manipulação de complexos sistemas moleculares por meio de simulações computacionais. Em 1982, Kuntz e colaboradores desenvolveram o primeiro algoritmo para docking molecular. Desde então, o seu uso em diferentes áreas da pesquisa nas ciências biomédicas vem crescendo exponencialmente.
Na essência, o docking molecular é uma simulação computacional que visa predizer os melhores modos de ligação entre duas moléculas, geralmente uma proteína e uma pequena molécula, chamada ligante, tais como um fármaco candidato. Além disso, também existem algoritmos de docking para interações entre proteína-proteína e ácidos nucleicos-ligantes. O melhor modo de ligação é aquele mais estável e energeticamente favorável do complexo formado por essas moléculas.
Figura 1. Elementos para o docking molecular. À esquerda, a molécula alvo (target), representada por uma proteína; no meio, a pequena molécula (ligand) a ser testada; e à direita, o resultado do docking molecular (molecular docking), mostrando o sítio de ligação do ligante na estrutura proteica. Fonte: Hernández-Santoyo et al., 2012.
Para a realização de uma simulação de docking molecular, precisamos de estruturas tridimensionais (3D) de boa qualidade, principalmente para o receptor (proteína). Nesse sentido, bancos de dados como o Protein Data Bank (PDB) e o DrugBank são essenciais. O docking molecular é composto principalmente de duas etapas: um algoritmo para amostragem de conformações/orientações de ligação e uma função de pontuação, que associa uma pontuação a cada pose (modo de ligação) prevista.
Existem três diferentes abordagens de docking molecular: rígida, semi-flexível e flexível. O docking rígido, por exemplo, considera tanto o receptor quanto o ligante como estruturas rígidas, que podem executar movimentos de translação e rotação apenas nos eixos XYZ. Por outro lado, o docking flexível leva em conta as variações conformacionais de ambas as moléculas, considerando tanto receptor quanto ligante como entidades flexíveis.
O docking semi-flexível é a abordagem mais utilizada, pois considera o receptor como uma estrutura rígida e o ligante como uma estrutura flexível. Desta forma, a simulação se torna um pouco mais próxima da realidade, sem exigir alta demanda computacional (como é o caso do docking flexível). A escolha entre essas abordagens depende da natureza do sistema molecular sob investigação e do poder computacional que você tem disponível para executar a simulação.
Figura 2. Representação das metodologias de docking molecular rígido, semi-flexível e flexível. Fonte: Adaptado de Mohanty & Mohanty, 2023.
A simulação de docking molecular é composta por duas etapas essenciais: um algoritmo para predizer poses de ligação, ou seja, identificar as conformações e orientações da entidade flexível e uma função de pontuação (score) que associa cada pose de ligação a um valor de pontuação e faz o ranqueamento destas. Existem diversos algoritmos para ambas as funções e com isso, diferentes softwares para realizar as simulações de docking molecular. Se você deseja conhecer mais sobre esses algoritmos, acesse este artigo em inglês.
Existe uma variedade de softwares disponíveis, tanto pagos quanto gratuitos, cada um com suas características. Alguns dos mais conhecidos são o AutoDock (Autodock4 e Autodock Vina), GOLD, Glide e DOCK. Dentre os citados, o Autodock Vina é o software gratuito mais utilizado, pois é um dos mais rápidos, fácil de utilizar e os resultados de pose de ligação possuem elevada acurácia, quando comparado com o Autodock 4.
As aplicações do docking molecular são vastas, mas sua contribuição mais notável reside na descoberta e desenvolvimento de novos fármacos, processo conhecido como drug discovery. Ao simular as interações entre moléculas, os pesquisadores podem identificar potenciais candidatos a novos medicamentos, otimizando o processo de triagem e reduzindo custos e tempo associados à pesquisa farmacêutica. Ainda no contexto farmacêutico, o docking molecular também auxilia no processo conhecido por reposicionamento de fármacos, pois pode contribuir para a identificação de novos alvos moleculares para fármacos já conhecidos.
Outros tipos de docking molecular, como o proteína/proteína, ácidos nucleicos/proteína e ácidos nucleicos/ligantes possuem aplicação nas ciências básicas, pois auxiliam no entendimento de como as moléculas interagem. Além disso, o docking molecular é aplicado no estudo das propriedades de nanopartículas sintéticas e orgânicas.
Alguns casos de sucesso do uso de docking molecular no descobrimento de novos fármacos são:
Amprenavir, um inibidor da protease antiretroviral do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV);
Flurbiprofeno, inibidor da ciclooxigenase 2 (COX-2) e utilizado no tratamento de artrite reumatoide e osteoartrite.
Isoniazida, inibidor da enoil-ACP redutase de Mycobacterium tuberculosis e utilizado no tratamento de tuberculose latente.
Tendo em vista os aspectos considerados, o docking molecular é uma ferramenta consolidada e preciosa para os desenvolvimentos científicos. Sua capacidade de simular interações moleculares oferece uma visão holística das ligações entre receptores e ligantes, o que permite avanços significativos nas ciências básica e aplicada. À medida que a tecnologia progride, esperamos que os softwares de docking molecular se tornem cada vez mais precisos e mais próximos da realidade biológica.
Referências